Transbordando autenticidade e atitude, as Irmãs de Pau chegaram no Sintonizando desta semana!
Vita Pereira e Isma Almeida não são irmãs de sangue, mas compartilham uma irmandade que nasce do afeto, da arte e da luta coletiva. Juntas, pesquisam as “Estéticas Sonoras e Visuais da Putaria Brasileira” e formam o duo mais babadeiro do funk.
As Irmãs de Pau fizeram sua estreia em 2021 com o single “Travequeiro” e, no mesmo ano, lançaram o primeiro álbum, “Dotadas” — que já ultrapassa 2 milhões de streams no Spotify. Explorando as sonoridades do funk, drill e vogue, elas fazem músicas ousadas, inteligentes e cheias de identidade que refletem suas vivências como travestis pretas e periféricas.
Elas já emplacaram alguns hits, como “Shambaralai” e “Derretida Remix”, de Pabllo Vittar. Em maio, lançaram o terceiro álbum, “Gambiarra Chic, Pt. 2”, estourando nas plataformas e expandindo o alcance da dupla, que segue com agenda de shows cheia até dezembro.
Vem sintonizar com as Irmãs de Pau!
Como vocês se conheceram, e em que momento surgiu a vontade de trabalhar com música?
Isma – A gente era da mesma rede escolar. A Vita passou por uma violência na escola, uma LGBTfobia, e isso fez com que eu a conhecesse pela internet. Mas criamos mesmo uma relação de amizade mais próxima durante as ocupações secundaristas, que aconteceram numa escola perto de onde morávamos. O que uniu a gente foi se reconhecer nesse mesmo lugar: duas travestis da periferia da Zona Oeste de São Paulo, tentando ser alguém, querendo ser alguém, querendo ser artista.
Vita – Eu já sonhava e me via como artista desde pequena, e a Isma também. Acho que, juntas, decidimos criar algo a partir da precariedade, porque, se só temos as ruínas e restos de concreto nas mãos, que a gente consiga erguer uma estrutura forte, que tenha a rua, a nossa história, a nossa família e que a gente consiga edificar isso.
As Irmãs de Pau cresceram no processo de amizade e com a gente entendendo politicamente o lugar que habitava e pensando “Por que não podemos criar outros imaginários possíveis? Por que a gente mora na periferia? Por que as pessoas que moram com a gente têm essa condição? Será que a trajetória delas devem ser todas no mesmo caminho?”.
Criar a dupla Irmãs de Pau foi um processo radical de imaginação política. A gente queria se ver em outro lugar e, para isso, precisava produzir e escrever. Acho que usar a palavra, a música, o audiovisual foi uma forma de materializar tudo o que a gente estava vivendo, tudo o que representa a nossa história.
“Irmãs de Pau” já traz um impacto logo de cara, como foi a escolha do nome?
Isma – O que gerou a nossa amizade e, consequentemente, as Irmãs de Pau, foi o reconhececimento na travestilidade. A Vita já estava um pouco mais à frente na transição e ela foi muito importante por ser a primeira referência de travesti pra mim, e que estava vivendo algo mais ou menos parecido. Ela foi me ensinando vários truques, e aí eu fui me desenvolvendo também, compartilhando outros truques com ela. É por essa nossa identificação e representatividade que escolhemos Irmãs de Pau.
Quais desafios vocês enfrentam na indústria musical, sendo travestis e atuando dentro do funk?
Vita – Todos, né? (risos)
Antes de fazer “Travequeiro” com o DJ MU540, a gente tinha lançado essa música para um outro produtor, que estava super em evidência na cena. Conseguimos o contato dele, mandamos mensagem, e ele falou que não ia lançar a canção, que o nome da nossa dupla tinha que mudar, e o nome da música também.
A gente ficou em choque. A primeira pessoa com quem conversamos sobre o projeto já veio com um “não”. Até pensamos: “Será que é isso mesmo que a gente devia estar fazendo?”. Mas não deixamos esse pensamento pairar por muitos dias porque, logo em em seguida, tivemos uma conexão com o DJ MU540. Ele nos abraçou e falou que ia fazer esse som com a gente.
Aproveitamos essa oportunidade, sem esquecer que viver no Brasil – país que mais mata travestis e transexuais – já é o maior desafio. E reconhecemos que hoje, até temos um certo privilégio, afinal conseguimos acessar espaços que, muitas vezes, outras pessoas da nossa comunidade não conseguem. Mesmo assim, a gente não é contratada pelas grandes empresas, não temos muitos recursos financeiros nas mãos, nem marcas nos apoiando e, até quando fazemos um show, sofremos transfobia nos bastidores.
Isma – Para mim, uma das maiores dificuldades também é deixar de ser vista como algo nichado, e as pessoas entenderem que a gente canta “música” e não “música para pessoas trans”. Falamos sobre muitas coisas: sobre negritude, sobre sexo, sobre humor. Mas as pessoas ainda tendem a achar que pertencemos só ao nicho LGBT. E não que eu reclame disso, porque esse nicho acolhe muito bem a gente – a maioria dos nossos shows é em eventos LGBT, e a gente tem conseguido viver bem com isso. Mas podemos ir além.
Não queremos ser marcadas só pela dor, porque a história das pessoas trans já vem sendo atravessada por isso há muito tempo. Agora é o momento de valorizar pessoas como as Irmãs de Pau, porque é isso que vai construindo um novo imaginário em que está tudo bem ser uma pessoa trans. Assim, quando uma mãe tiver uma filha trans, ela vai ficar menos preocupada. Vai pensar: “Ela pode ser um exemplo de sucesso também, porque eu já conheço outras”.
De onde vem a força para subir no palco mesmo diante do preconceito?
Vita – No começo da nossa carreira, a gente tinha muito medo e ficávamos sob tensão. Mas, quando entendemos que a nossa presença no palco é sobre causar e redistribuir desconforto, tudo ficou mais leve. Hoje em dia, já passamos por tantos festivais, por tantos lugares, que entendemos que a gente merece estar aqui. Ver uma música que nasceu no seu quarto fazer as pessoas dançarem, gritarem, cantarem e se encantarem com você… isso é muito lindo. Eu queria que todas as pessoas tivessem esse privilégio de, às vezes, subir no palco e se sentirem uma popstar. Espero que a nossa presença nesses festivais tenha sido uma fresta para que outras também consigam entrar. Para que novas artistas também possam passar por esses lugares ou por lugares ainda maiores e melhores do que os que a gente passou.
Isma – É uma delícia estar nesse lugar, porque dá para sentir que as coisas estão mudando, e que você é uma das portadoras desse movimento. Mas, ao mesmo tempo, é solitário, porque sabemos que ainda não é a realidade para todo mundo. Sabemos que muitas de nós ainda não estão nesse lugar, e aí bate essa sensação de que você foi a que deu sorte. Só que eu continuo sendo travesti! Às vezes, estou num espaço onde meu show foi divulgado, onde estão concentrados os meus fãs, e vou ser a super diva, super ovacionada. Mas, no dia seguinte, posso estar num lugar onde ninguém me conhece, vão me ver só como uma travesti e exercer a transfobia que tanta gente ainda pratica. Ou seja, é uma gangorra. Tem hora que você se sente muito bem, em outra lembra onde está e se sente sozinha porque não vê suas amigas vivendo isso também.
Como funciona o processo de vocês para produção das músicas, escolha do repertório, planejamento do show?
Isma – É bem gambiarra chic, literalmente! A gente gosta muito dessa expressão porque ela representa tudo o que vivemos na nossa trajetória sendo artista independente, trans e periférica. Por exemplo, a gente não tem estúdio, se a gente paga um dia para gravar as músicas, tem que entregar a voz naquele tempo, esteja bem ou não. Para os shows, infelizmente não temos o número de ensaios que consideramos ideais com o balé. Juntamos um dinheirinho para passagem de todo mundo, um lanchinho, reserva de estúdio, negociamos com a coreógrafa… A gente vai como pode.
Mas temos muitos aliados, a comunidade tem essa premissa de se unir. Nossos produtores, por exemplo, são pessoas LGBTs que acreditaram na gente. Nosso balé também é LGBT, são pessoas que entendem a relevância do trabalho das Irmãs de Pau e, muitas vezes, topam estar com a gente mesmo com todas as limitações. É um processo que não é o ideal.
A gente sempre imagina uma coisa na cabeça, mas depois, por conta de dinheiro, entende que precisa adaptar. O dinheiro influencia muita coisa sobre o nosso processo criativo, mas, ao mesmo tempo, é isso que caracteriza o nosso projeto. É isso que faz ser uma gambiarra — mas uma gambiarra chique, que está alcançando milhares de pessoas, mudando vidas e fazendo sentido para muita gente! E isso faz as pessoas se identificarem com o nosso processo, porque isso também é o Brasil e o Brasil é uma grande gambiarra.
Recentemente vocês lançaram o álbum “Gambiarra Chic, Pt. 2”. Como foi o processo criativo?
Vita – Vivendo a vida, me vem a música. Acho que nunca sentei para escrever uma canção do começo ao fim. Estou aqui conversando com vocês, por exemplo, e de repente algo me dispara um insight e escrevo uma palavrinha, uma frase ou qualquer coisa. Depois, volto nessas anotações e começo a pensar: “acho que esse negócio aqui está falando sobre tal assunto”, então começo a “canetar” mais em cima disso. Acho muito interessante que quanto Irmãs de Pau, não temos costume de compor juntas. A gente entende muito a nossa singularidade, nossas individualidades. Então pensamos em um tema macro, e cada uma desenvolve da sua forma, no seu dia a dia. Depois nos reunimos para entender que história aquelas músicas contam juntas. Foi assim, com “Gambiarra Chic, Pt. 2”.
Quando começamos a escrever o álbum, queríamos falar sobre como que é acessar espaços de poder e ainda ser marcada como travesti – que continua sendo vista de forma hipersexualizada e objetificada. Quando vimos o resultado, decidimos contar essa história também pela capa. Ela se passa dentro de um aeroporto e traz essa tensão de uma sala de expedição, levantando questões como mobilidade social, quem tem direito de ir e vir, de transitar por esses territórios. Porque ao mesmo tempo em que somos vistas como algo criminoso, também somos vistas como objeto de desejo.
E esse álbum também fala sobre afeto. Nossas músicas estão falando de amor e de desafeto. É importante dizer isso, porque nem toda travesti quer ficar falando de amor romântico o tempo inteiro. Não é que a gente não queira viver ou falar sobre isso, mas a gente também está falando da realidade. A gente já ficou com caras que, historicamente, nem beijavam a nossa boca. Será que mulheres cis, brancas, padrão, vivem isso? Acho que muitas mulheres negras passam por isso. Muitas mulheres gordas também. Mas que lugar é esse? Isso é muito perverso. É esse o lugar onde a sociedade coloca nossos corpos. Por isso nossas letras são pesadas, porque a nossa realidade é pesada. Não dá para cantar histórias de Cinderela.
Como tem sido a recepção dos fãs com esse novo projeto?
Vita – Tem sido incrível. Acho que aumentou muito a proporção de fãs. Antes, nosso público era majoritariamente aquele que nos acompanha desde o começo, que já conhecia a trajetória. Agora, a gente sente que expandiu, e surge essa preocupação: como contar essa história pra quem está chegando? Como fazer essas pessoas entenderem quem somos desde sempre? Porque quem vem de fora, às vezes, não entende muita coisa de primeira. Mas está sendo muito gostoso viver isso. Dá medo, claro, mas ao mesmo tempo esse público novo também vai tranquilizando a gente. É como se dissessem: “tô gostando, relaxa e vamos nessa”. E também está sendo ótimo como o os contratantes. Pessoas que têm poder, que têm influência, estão abraçando cada vez mais o nosso trabalho. E uma coisa vai puxando a outra: mais fãs levam a mais oportunidades, e mais oportunidades fazem a gente alcançar novos espaços.
Isma – A gente é muito grata aos nossos fãs por terem mudado a realidade da nossa vida e da nossa família. Especialmente por tudo que estamos vivendo hoje. Por isso “Gambiarra Chic, Pt. 2” é um trabalho feito com tanta qualidade. É um projeto em que a gente chamou produtores, montou uma equipe, e pensou: “cara, nossos fãs merecem isso”.
Como tem sido a experiência de vocês com a Abramus até agora? Qual a importância de contar com uma entidade que protege os direitos autorais?
Vita – Somos muito felizes de estar aqui com vocês, na Abramus, porque foi uma das indicações que recebemos logo no início. A gente começou a fazer música no susto, e não tinha muita noção sobre direitos autorais e como funciona pra receber quando alguém toca nossa música no rádio ou numa balada. É muito importante que os artistas tenham consciência dos seus direitos e como garanti-los, porque, isso é o nosso patrimônio. É a nossa aposentadoria.
Isma – Sou muito grata por ter tido essa noção de entender o que é a Abramus, como o meu trabalho impacta vocês, e vocês, consequentemente, impactam o meu trabalho. E me sinto muito bem representada. Sendo artista independente, a gente teve que se envolver em tudo. Foi desafiador, mas hoje eu agradeço por isso, porque me deu uma noção maior de quem eu sou e a relevância que eu tenho. Ser famosa não é só ter número no Instagram ou uma música “hitada” no Spotify, mas sim conseguir viver as consequências e usufruir dos direitos que a minha música me garante. Acho que isso é ainda mais relevante do que número, do que os elogios nos comentários. Isso me torna mais dona de mim, me dá noção dos meus direitos — e, para nós, enquanto artistas trans, periféricas, negras, isso é muito importante.