Forte, sensível e necessária: é com Tyller Antunes que o Sintonizando desta semana encontra sua voz.
Atriz, compositora, cantora, professora e mulher transgênero — Tyller Antunes é tudo isso e mais um pouco. Com uma presença marcante e uma trajetória construída com sensibilidade e muita potência, ela tem se destacado por onde passa.
Em 2022, lançou o EP “Borboleta”, um trabalho poético e tocante que traduz, em música, suas experiências. As faixas revelam não só sua delicadeza artística, mas também sua coragem em transformar vivências em arte.
Mas a jornada de Tyller não para na música. Nos palcos, brilhou no musical de sucesso “Brenda Lee e o Palácio das Princesas” e na peça teatral “O Alienista”, mostrando que seu talento transborda e se reinventa em diferentes linguagens.
Vem sintonizar com Tyller Antunes!
Pode contar um pouco sobre como a música e a arte entraram na sua vida?
Desde muito cedo, aos 8 anos, a música e a arte foram formas de sobrevivência e expressão para mim. Cresci em um ambiente onde nem sempre havia espaço para ser quem eu era de forma plena, então cantar, interpretar e criar, se tornaram maneiras de me afirmar no mundo.
A arte entrou na minha vida como um refúgio, mas também como uma ponte — algo que me conectava com outras realidades, outras possibilidades e, principalmente, comigo mesma. A música sempre me acompanhou.
Quando criança, amava escutar Aretha Franklin, Whitney Houston, Mariah Carey, Luciana Mello, Negra Li, Rita Lee, Pitty e várias outras artistas femininas… Ainda pequena, eu me encantava com as vozes, com as histórias que uma canção podia carregar.
Ao longo do tempo, fui descobrindo que eu também podia contar as minhas histórias por meio da arte, da música — e, sendo uma mulher transgênero, isso tem um peso ainda maior. A arte me permite ocupar espaços que muitas vezes nos são negados. Ela me permite existir com potência, beleza e verdade.
Na adolescência, meus interesses sempre foram o coral, as aulas de violão, dança, teatro. Hoje, a arte é a minha linguagem. É onde consigo transformar dor em força, invisibilidade em presença e silêncio em voz. É também uma ferramenta de luta e de afeto. Uma forma de tocar outras pessoas e construir narrativas que resistem e encantam ao mesmo tempo.
Quais os maiores desafios enfrentados por artistas transgênero na cena artística, e quais mudanças ainda são necessárias para tornar esse espaço mais acolhedor e inclusivo?
Os maiores desafios enfrentados por artistas transgêneros ainda estão muito ligados à invisibilidade e à falta de oportunidades reais!
Muitas vezes, a nossa presença é vista como exceção, ou limitada a papéis estereotipados e superficiais. Existe uma resistência estrutural em nos permitir ocupar espaços de protagonismo — seja no palco, nas telas, na produção ou na direção artística. A arte, que deveria ser um campo de liberdade, ainda funciona, muitas vezes, como espelho das exclusões sociais.
Outro desafio é a constante necessidade de provar nossa capacidade, como se nossa identidade fosse algo a ser superado antes mesmo de sermos reconhecidas como artistas. E isso se soma ao cansaço emocional que carregamos: lutar por espaço, por respeito, por dignidade — tudo isso enquanto produzimos, criamos e nos expomos publicamente.
A mudança que precisa acontecer é profunda. Não basta nos chamar para campanhas pontuais ou projetos que “acolhem a diversidade”. É preciso contratar pessoas transgênero em todos os níveis da cadeia artística, nos dar acesso a editais, à formação técnica, à produção com dignidade. É necessário que sejamos vistas como artistas completas — com complexidade, com histórias múltiplas —, não apenas como símbolo de resistência, mas também de beleza, de amor, de talento, de invenção, inovação e capacidade.
Tornar o espaço artístico mais acolhedor passa por ouvir mais, abrir mão de privilégios e construir coletivamente. A arte só é verdadeiramente viva quando todos podem existir nela com liberdade.
Você é cantora, compositora e, também, atriz. Como equilibrar todas essas atividades?
Ser cantora, compositora, atriz, professora e ainda estar na universidade tem sido um exercício constante de resistência, amor e tentativa de organização. É desafiador, claro, porque tudo exige tempo, presença e entrega. Mas, ao mesmo tempo, essas áreas se alimentam entre si.
A arte, o estudo e o palco fazem parte da mesma força criativa que me move. Como mulher transgênero, artista e trabalhadora, eu não tenho o privilégio de viver só da arte ou só dos estudos, então preciso me dividir — muitas vezes com cansaço, mas também com muito propósito. A universidade é um espaço onde tento construir novos futuros, enquanto a música e o teatro são lugares onde elaboro as dores e as transformo em poesia, em voz, em corpo.
O maior desafio é o tempo. Às vezes, me sinto sobrecarregada, mas também muito viva. Estou agora terminando o primeiro semestre da faculdade, que estou cursando justamente para ter o diploma de licenciatura em Teatro. Cada música que escrevo, cada personagem que interpreto, carrega partes da minha história. A universidade acaba sendo um complemento de tudo isso — e me dá força para seguir. Me sinto inteira, em movimento, existindo.
O EP “Borboleta” traz uma sonoridade delicada e ao mesmo tempo intensa. Como foi o processo de criação desse trabalho? Tem novos projetos ou lançamentos a caminho?
O meu EP “Borboleta” nasceu de um lugar muito íntimo e necessário. Pouco antes da pandemia… Ele foi sendo gestado junto com a minha própria transformação — sonhos, medos, observações, sentimentos e sensações como mulher transgênero, como artista e como ser humano.
O processo de criação foi muito emocional e assertivo. As letras e ideias começaram a fazer sentido, a fluir, e eu não hesitei em colocá-las em rascunhos e aprimorá-las. Também tive o apoio do meu produtor musical, Valter Zagatto, que vem da vertente do rock, mas que acreditou em mim e me abraçou na realização desse EP — um homem cisgênero que viu em mim potencial e topou me ajudar. Gosto e quero falar dele. Fazíamos barzinho em Sorocaba: ele tocava violão e sempre estava disposto a executar minhas vontades e ideias musicais — algo que, infelizmente, muitas pessoas da própria comunidade me negaram.
Trabalhei com pessoas que acreditaram na minha visão artística e respeitaram a minha história. A escolha dos arranjos, das letras, dos timbres… tudo foi pensado para traduzir essa travessia. Foi um momento de renascimento, de colocar no mundo uma versão de mim que antes não tinha espaço para existir. E eu também queria que esse EP fosse um respiro para quem o escutasse — pensando, principalmente, no contexto da pandemia.
A minha faixa “Casulo” fala sobre entendermos a importância de respeitar o tempo das coisas. Minha Música “É Ela” é uma afirmação de gênero e aceitação. “Meu Corpo” é sobre se amar como se é — na forma exata, no jeito, na aparência. Quis construir um caminho com esse EP onde eu pudesse cantar sobre transição, aceitação, respeito, carinho, amor, desejo, força… Tenho muito orgulho das minhas composições.
Cada faixa carrega um pedaço da minha trajetória: as dores, os recomeços, os silêncios e também os gritos de liberdade. A sonoridade delicada e intensa reflete exatamente isso. É o voo da borboleta — que escolhi como símbolo para escrever as composições —, que parece frágil, mas carrega uma força imensa dentro de si.
E sim, tem novos projetos a caminho!
Estou estruturando o show “Borboleta”, pensando em participações incríveis, projeções e uma narrativa que conecta música, corpo e identidade. Além disso, tenho composições em construção, pois andei com vontade de lançar um álbum — barbarizando ainda mais, mesclando estilos musicais. Mas é preciso inspiração, e o mundo parece tentar, o tempo todo, nos tirar isso. Muitas coisas são desanimadoras — e talvez eu não queira escrever sobre isso. Ou queira. Mas não quero ser tomada por mais ansiedade.
Quero muito ver o show do EP “Borboleta” nascer primeiro…A arte continua sendo o lugar onde eu me reconecto comigo e com o mundo — e eu mal posso esperar para compartilhar o que vem por aí.
Como tem sido sua experiência com a Abramus?
Minha experiência com a Abramus tem sido muito positiva. Conheci pessoas ótimas da associação no evento Women’s Music Event (WME), em São Paulo, e foi sensacional.
Como artista independente e mulher transgênero, é fundamental saber que minhas criações estão protegidas e reconhecidas de forma legal. Fazer parte da associação me trouxe mais segurança e também um sentimento de valorização enquanto compositora. A Abramus tem contribuído diretamente para a proteção dos meus direitos autorais, garantindo que as músicas que crio estejam registradas e que eu possa receber pelos usos das minhas obras.
Em um mercado tão desafiador para artistas LGBTQIAPN+, ter esse respaldo é essencial. A gente sabe o quanto é difícil se manter na cena, então contar com uma entidade que reconhece e cuida da parte jurídica e burocrática do nosso trabalho artístico faz toda a diferença.
Além disso, sinto que fazer parte da Abramus me conecta com outros artistas e me insere em um sistema profissional que nem sempre é acessível para todes. É uma forma de ocupar um espaço que historicamente foi negado a artistas como eu — e agora, com consciência e estrutura, posso me afirmar nesse lugar com mais força.